quinta-feira, 28 de outubro de 2010

XVII – Ariel

Era uma menina daquelas típicas de comercial de xampu de bebê. Os cabelos longos e ruivos cuidadosamente penteados e presos em “chiquinhas”. Sardas minúsculas cobriam seu nariz e parte das maçãs do rosto. Não me lembro de uma criança se aproximar tanto de mim por livre e espontânea vontade.


– Ah, não! Foi só... Um cisco... Isso! Um cisco... – Tentei sorrir ao responder. Não sei se fui convincente.


Também não deu tempo de saber, pois enquanto limpava minha vista senti que alguém se aproximou.
– Ariel! Já pedi pra não se afastar de mim assim! Você me deu um susto!
– “Diculpa”, papai... Mas a moça tava “tiste”...

Ariel?! Não podia ser...


Abri os olhos ao mesmo tempo em que Yuri levantou a cabeça. O susto foi mútuo.
– Léo?! Está tudo bem?
– Ah... E-está... – Eu gaguejei. – Estou bem...


O professor se sentou ao meu lado.
– Não parece... Você tá sozinha?
– Eu estou bem, Yuri, já disse! E sim, estou sozinha! – Respondi enérgica.– Que problema tem nisso?

Porque ele achava que eu precisaria de alguma proteção?


– Não... Nenhum... – Yuri respondeu já se levantando. – Vamos, Ariel... Está ficando tarde... Que tal um sorvete no caminho?
– Ôba! – A menina exclamou.


Eu me arrependi da minha grosseria no mesmo instante.
– Não, professor! Quer dizer, Yuri... Eu... Me desculpa...
– Tudo bem, Léo... Você não precisa ficar arredia se estiver vulnerável. Não é vergonha pra ninguém.


– Eu não estou arredia... Nem vulnerável! Porque você tem mania de pegar no meu pé? Nem estamos no campus...
– Não estou pegando no seu pé, Léo...


Yuri sentou-se novamente ao meu lado e concluiu:
– Pelo menos não era essa a intenção...
– Não? – Duvidei. – Então qual era?


– Papai, posso ir ali, ó? – Meu professor foi salvo pela sua pequena filha, que apontava para uma caixa de areia convidativa.
– Pode, baixinha, mas não saia, tá bom? Posso confiar em você?


– Saio não, papai... – A menina respondeu já se dirigindo para onde havia apontado.
– Que gracinha! – Pensei alto, ao observar os passos desequilibrados de Ariel.


E era sincero. Nunca fui dada a crianças e por isso talvez elas não gostem muito de mim. Minha tolerância e paciência não são lá essas coisas. Mas Ariel era tão diferente! Parecia uma “mini-pessoinha”.
– A mãe gosta de brincar de boneca com Ariel... – Yuri disse parecendo ler o que eu havia acabado de pensar.


– Não sei por que a Sônia cultiva estes cabelos longos na menina... – Continuou. – A franja cai no rosto. Atrapalha a garota a brincar... Fora o calor que ela deve sentir...
– O que Ariel acha disso?


Yuri sorriu.
– Ela gosta, é claro... Faz o estilo “fashion”...
– Então deixa... Quando ela quiser, vai pedir pra cortar...


– Ah, é? E como sabe disso? Como sabe que ela não deixa assim apenas para agradar a mãe?

Eu não sabia, é claro. Quem era eu pra falar sobre isso?
– E onde ela está? – Mudei rapidamente de assunto. – Sua esposa, não está aqui com vocês?


Confesso que estava curiosa para conhecê-la. A julgar pela filha, e pela escolha do marido, imaginei ser uma mulher de beleza arrasadora.
– Não. – Yuri suspirou. – Ela... Tinha outras coisas... Pra fazer.


Eu senti um total desconforto em sua voz. Não pude entender por que, e embora isso tivesse me deixado mais curiosa ainda, não tive coragem de perguntar. Ele então emendou, ao levantar.
– Bem... Eu já estava mesmo de saída... Você vai ficar por aí?


Era a minha intenção primeira. Mas depois daquele encontro, minha cabeça dava voltas, e o pensamento oscilava entre a visita que tinha pra encarar em casa, a expressão de Yuri ao falar da esposa, e a “preocupação” de Ariel comigo.


Meu professor ainda me encarava após quase um minuto de silêncio.
– Não, eu... Acho que vou pra casa. – Respondi, enfim.
– Precisa de carona? Posso pegar meu carro em casa e...


– Ah, não! – Eu o interrompi. – Obrigada, eu estou de carro.
– Ok, então vamos, eu e Ariel te acompanhamos até lá antes de voltar.


Quando Yuri tentou colocar Ariel no carrinho, a menina pareceu não gostar muito.
– Tem certeza que prefere ir andando? – Ele perguntou à filha. – É uma boa caminhada.
– Arram... – E fez um meneio.


– Vocês moram aqui perto? – Eu nunca os tinha visto pela vizinhança. Certamente eu me lembraria.
– Nós nos mudamos há pouco tempo. Gostei deste bairro.

Estava explicado.


– Mas se eu for efetivado na UFEB, talvez tenha que me mudar novamente. Fazer o percurso todo dia é cansativo.
– Com certeza... – E eu me peguei torcendo para que seu desejo se realizasse.


Encontrei o carro de papai e me despedi.
– Bem... Até segunda... – Sorri.
– Até! – Yuri acenou me retribuindo a simpatia.


Quando olhei para baixo, Ariel estava gesticulando para mim.
– “Beso”, tia!

E então estava lá: o jeito “Tedesco” de Nicole, o mesmo que também havia em seu pai. Que família era aquela!



segunda-feira, 25 de outubro de 2010

XVI – Doce Lar

Não sei por que Pedro resolveu começar sua tortura logo cedo, ao me convencer de irmos todos no mesmo carro. O argumento era que não tinha cabimento 2 automóveis poluindo o planeta se cabiam todos em um só. Apelar para os bichinhos e plantinhas era golpe baixo.


Desnecessário dizer que meu mau humor novamente atingiu níveis alarmantes. Eu estava com vontade de esganar um e beber o sangue de outro. Eu só livraria o Zeca, porque ele não é muito expressivo. Então nem sei o que pensar dele.


Eu só posso mesmo agradecer por ela não ter dado um pio durante toda a viagem. Em compensação pude fitar sua expressão pelo espelho retrovisor. A visão era restrita, mas suficiente para perceber que ela estava gostando daquilo tanto quanto eu. Pedro também não deve ter-lhe contado alguma parte da história, provavelmente aquela em que eu estava incluída.


Quando descemos na porta da casa do papai, pude ouvi-la resmungar entre dentes:
– Você me paga, Peu!

Odiava quando ela o chamava assim. Parecia fazer questão de mostrar sua intimidade com ele. Idiota.


Dei um longo abraço no meu pai. Eu estava com muitas saudades. Praticamente desde o início do ano letivo eu não havia estado com ele. Pouquíssimas e curtas visitas ou conversas ao telefone.
– Minha Princesinha! O castelo não é o mesmo sem você!

Olhei de relance para Penélope. Esperava ver o sarcasmo impresso em seu rosto, mas não. Ao contrário, parecia enternecida, e isso só me deu mais raiva.


Meu pai sempre me mimou. Após a morte da mamãe ainda mais. Apesar de bem grande e confortável, não havia nada de castelo em nossa casa, muito menos alguma coisa de princesa em mim.
– Entrem, como estão? – Papai cumprimentou cordialmente as visitas que ele já conhecia há tempos.


Depois abraçou Pedro, com quase todo carinho que me dispensou.
– E aí, gurizão! Tá forte, heim? – Observou. – O que anda fazendo além do futebol?
– Distribuindo socos. – Respondi apenas para provocar.


Dr. Olívio olhou para o meu irmão preocupado, mas ele respondeu rapidamente.
– Só no meu saco de areia, Olívio... Embora tenha muita gente precisando tomar umas bolachas... – Provocou-me de volta.

Eu dei de ombros.


– Onde está minha mãe?
– Na cozinha... Sabe como ela faz questão de acompanhar de perto as tarefas domésticas, ainda mais quando vocês veem almoçar.


– Sei... – Pedro respondeu exibindo o sorriso sempre tão doce quando se referia a sua mãe.

Minha madrasta sempre teve o hábito de recepcionar as visitas, junto com papai. Não estava a porta desta vez.


Mas como que pressentindo a chegada de seu filho, Dora surgiu na sala. Mesmo à vontade e evolvida com tarefas cansativas de cozinha, ela estava impecavelmente apresentável. Como uma mulher que levou uma vida tão dura, conseguia parecer tão jovem? Como uma mulher tão sem berço, conseguia aparentar tanta classe? O olhar de admiração de meu pai era arrepiante.


– Pedro! – Ela o envolveu em seus braços, como devia fazer desde que o filho nascera. – Estava com tanta saudade...
– Oi, mãe... – Ele respondeu meio sem jeito. – Eu também...


Dora voltou-se para mim, repetindo o gesto carinhoso.
– Léo, querida... Você está cada vez mais linda.
– Eu tenho em quem me inspirar, não é?

Estranho, uma mulher como ela corar com meu elogio.


– David não quis vir? – Dora fez a pergunta que eu não queria responder.

Meu pai me olhou com ansiedade, e Pedro se adiantou:
– Ah, ele tinha segunda chamada de algumas provas, mas lamentou profundamente. Talvez num próximo. – Meu irmão mentiu em meu lugar, poupando-me de ter que dar explicações.


Não, eu nunca tive o hábito de falar abertamente das minhas relações em casa. Ninguém me proibia, mas achava minha libido exagerada para o entendimento do meu pai. Eu também duvido muito que ele gostasse de ouvir. E apesar de toda compreensão de minha madrasta, não me sentia íntima o suficiente.


A comida de Dora nunca era menos que saborosíssima. Uma pena que a companhia à mesa estava me causando uma enorme indigestão. Menos mal que Penélope deveria estar na mesma condição, presumi por sua feição. Porque Pedro submeteu a nós duas essa tortura desumana?


Quando ela levantou, após terminarmos, oferecendo-se para ajudar a retirar os pratos da mesa juntamente com Pedro, apesar de termos pessoas contratadas pra fazer esse trabalho, minha paciência se esgotou.
– Papai, me empresta o seu carro? Pedro me obrigou a vir no dele...


– Claro, Léo! Mas você vai sair agora? Achei que jogaríamos carta...
– O jogo não pode ficar para noite? Lembrei que meu hidratante corporal acabou e não durmo sem passar, se não acordo igual a uma uva passa. – Menti, embora a parte da uva passa fosse verdadeira, mas precisava sair dali agora, antes que tivesse um ataque.


Meu pai riu.
– Você é tão exagerada, querida! Tudo bem, carteado à noite então...
– Obrigada, papai!


Antes de sair, ainda liguei para Nicole. Ela sempre era minha tábua de salvação. Mas descobri com frustração que minha melhor amiga estava passando o fim de semana com Neto num chalé nas montanhas. Uma pequena surpresa de seu namorado por conta da semana em que ficou ausente. Morri de inveja.


Peguei o carro e saí dirigindo sem um rumo certo. Nem vontade de fazer compras eu sentia e isso era muito estranho. Eu devia ter rodado por aproximadamente uma hora, mesmo tendo a impressão de que passara mais de uma vez pelos mesmos logradouros.


Até que um lugar me chamou atenção. Era uma pracinha, daquelas com parquinho e coreto. Balanços e escorregadores, os tipos de brinquedos que poucas crianças curtem hoje em dia. Mas reconheci naquela, o local onde meu pai me levou várias vezes pra brincar quando eu era pequena.


Estacionei o carro e desci disposta apenas a sentar em um dos bancos e espairecer. Mas minha mente continuava focada no resto do dia que teria pela frente, e ainda o domingo e a volta para a UFEB. Todos marcados pela presença irritante de Penélope.


A sensação incômoda da primeira lágrima voltou a me atormentar. Mas logo em seguida, meus pensamentos foram interrompidos por uma voz infantil, que mal conseguia pronunciar as palavras corretamente:
– Tá “tiste”, moça?



sexta-feira, 22 de outubro de 2010

XV – Como assim?

Passei a sexta feira trancada no quarto. Ouvi o telefone tocar algumas vezes, mesmo assim, Pedro respeitou meu espaço, e nem posso dizer que fiquei satisfeita com isso. Estava precisando muito de um colo e tudo que eu queria é que meu irmão me desse o dele.


Só saí à noite porque estava faminta. Pedro estava lavando a louça quando eu abri a geladeira para procurar o que comer.
– Você está bem? – O interesse dele parecia verdadeiro ao perguntar.
Eu apenas acenei com a cabeça.


– Está com fome?
– Um pouquinho...


– Sente-se. Deixa que eu faço uma especialidade rapidinha pra você.

Eu estranhei toda aquela gentileza repentina. Eu era merecedora de seus cuidados novamente? Estava curiosa, mas preferi não perguntar para evitar uma possível nova discussão.


Obedeci e esperei. Ele não demorou mais de 5 minutos para me preparar um sanduíche delicioso de queijo com salada. Depois sentou-se a minha frente e me observou em silêncio enquanto eu comia. Seu olhar contemplativo me deixou estranhamente tímida.


Apenas quando terminei minha última mordida ele perguntou:
– Estava bom?
– Ar-rã...


– Dr. Olívio ligou. – Disse ele retirando meu prato e voltando para a pia. – Chamou para passarmos o fim de semana.
– Ah...


Eu realmente amo minha pequena família. Mas não estava preparada para esse convite. Meu pai com certeza me encheria de perguntas sobre a faculdade que eu não saberia como responder, eu detesto mentir para ele.
– Eu disse que você estava dormindo porque passou a noite estudando.


Pedro voltou a sentar na minha frente na mesa, antes de continuar:
– Ele falou que o David está convidado contanto que durma no quaro de hóspedes.

Meu pai era um cara engraçado. Não era possível que ele achasse que eu ainda era virgem. Mas eu sabia respeitar seu espaço, por mais incompreensível que fosse pra mim.


– Estamos dando um tempo. Talvez você já saiba.
– Eu... – Ele estava visivelmente constrangido. – Não... Não sabia.

Mesmo assim, eu não acreditei.


Pedro ensaiou levantar, talvez tentando fugir daquela conversa. Eu resolvi não facilitar as coisas pra ele.
– Posso te fazer uma pergunta?
– Ãh... Pode...


– Quem era no telefone aquele dia?

Sua expressão mudou. Não propriamente pela minha pergunta, mas por ela lembrar-lhe de minha bisbilhotice.
– O que isso te interessa?


Pronto. Eu já tinha estragado tudo.
– Você disse que eu podia perguntar. Não responda se não quiser.
– E eu só estou te perguntando por que você quer saber. Acho que é um direito meu afinal.


– Apesar de você não acreditar, eu me importo com você. – Disse, ao levantar, fingindo que a resposta dele não me interessava tanto.

É claro que eu me importo com Pedro. Muito. Mas não posso negar que minha curiosidade estava me matando.


Caminhei em direção ao meu quarto. Mas parei quando ouvi a voz de Pedro novamente:
– Era a Pêpa.


Traguei saliva e congelei. Como assim, era a Pêpa? Que conteúdo de conversa era aquele? Eles estavam saindo? Pedro estava saindo com a Pêpa? Ele afirmou que não teria nada com ela!


Respirei fundo e voltei para Pedro. Enchi-me de ousadia para perguntar:
– Vocês estão namorando?
– Não. – Ele respondeu seco e curto e eu ensaiei um alívio momentâneo, pois Pedro completou em seguida – Mas eu convidei ela e Zeca pro findi. Por favor diga que vai se comportar...


Eu me senti sendo tragada por um buraco sem fundo que se abriu de repente sob meus pés.
– O quê?! – Exclamei aturdida. – Então foi por isso toda essa gentileza comigo aqui na cozinha?


Pedro se levantou.
– Não, Léo... Você entendeu errado... Uma coisa não tem nada a ver com outra!
– E eu é que sou baixa? – Eu já tinha perdido o controle. – Vamos agradar a pateta da Léo pra ela não fazer feio com as visitas!


Eu estava com tanta raiva! O sanduíche se revirou no meu estômago.
– Eu te digo Pedro, você vai precisar fazer melhor que isso!


Eu saí batendo o pé, mas antes de chegar ao meu quarto, meu organismo avisou que não iria resistir.


Enquanto estava ali naquela posição humilhante, tentava esquecer o fim de semana infernal que teria pela frente.